ARTIGO - Em defesa da vida de quem vos defende
Por Carlos Barros*
Março de 2019. 4º Tribunal do Júri da Capital - PE. Dois dias de intensos debates. No final do primeiro, não teve “sextou”: aproveitamos a suspensão dos trabalhos para, madrugada adentro, revisar os milhares de documentos do processo. Com o amanhecer, apesar do sábado ensolarado, voltamos ao combate. E só saímos do Plenário à noite, após cumprir a missão que nos foi dada pela OAB Pernambuco: dignificar a memória de uma advogada vítima de homicídio em razão do simples exercício profissional, velar pelo respeito à advocacia e lutar por justiça. Ao final da sessão, consagrou-se a firme atuação da Ordem, em assistência à acusação, contra aquele vil ataque ao múnus advocatício: réus condenados às penas de 22 e 24 anos de reclusão.
Dezembro de 2022. Tribunal do Júri da Comarca de Igarassu - PE. Mais uma sexta-feira que, para nós, não teve “sextou”: novamente representando a OAB-PE, estávamos em Plenário defendendo aqueles mesmos relevantes valores, ante o homicídio de uma advogada em seu escritório após o executor se passar por um possível novo cliente, ato que profanou, além da vida, um local sagrado para os profissionais da advocacia. A resposta ao enérgico trabalho da Ordem, em assistência à acusação, foi anunciada às 20h: os três réus julgados foram condenados às penas de 19, 20 e 22 anos de reclusão.
Janeiro de 2024. Município de Santo Antônio - RN. Uma advogada foi morta a aproximadamente 600 metros da delegacia de polícia de onde acabara de sair após prestar assistência a um cliente, também vitimado. Aos 26 anos, a jovem defensora teve a vida ceifada apenas por, segundo noticiado, promover a defesa das liberdades individuais, função inerente à advocacia, cujo orgulho de exercer ela demonstrava publicamente em suas redes sociais.
Ao se refletir sobre esses episódios, um detalhe, em especial, chama atenção – para além, é claro, da constatação de que não há limites para a perversidade humana, de que o Estado Democrático de Direito é ultrajado quando se investe contra a advocacia e de que a OAB reagirá duramente a qualquer ato de vulneração do exercício advocatício, conforme fez a Seccional pernambucana e está fazendo a potiguar em face dos referidos casos.
Realmente, chama atenção, pelo que é digno de nota, o irônico fato de que o indivíduo que agredir um advogado ou advogada deverá constituir justamente um profissional da advocacia para fazer sua defesa ao responder na Justiça criminal pela agressão. Sim, deverá!
É que “nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor”, a teor do art. 261 do Código de Processo Penal. Mais: “se o acusado não o tiver, ser-lhe-á nomeado defensor pelo juiz”, nos termos do art. 263 do mencionado diploma legal.
Quer dizer: ao agressor não é dada sequer a opção de prescindir do ofício por si afrontado. Isso porque “o advogado é indispensável à administração da justiça”, e “seus atos constituem múnus público” (art. 133 da Constituição Federal e art. 2º, § 2º, da Lei 8.906/94), de modo que, sendo a liberdade uma garantia fundamental e estando ela em jogo no processo penal, é inadmissível uma condenação criminal ao arrepio de uma defesa técnica.
A propósito, registre-se que há de se respeitar mesmo os advogados e advogadas que assumem a defesa desses algozes da advocacia. Em primeiro lugar, pelos motivos expostos acima. Em segundo lugar, porque “é direito e dever do advogado assumir a defesa criminal, sem considerar sua própria opinião sobre a culpa do acusado”, sendo certo que “não há causa criminal indigna de defesa, cumprindo ao advogado agir, como defensor, no sentido de que a todos seja concedido tratamento condizente com a dignidade da pessoa humana, sob a égide das garantias constitucionais”, como preceitua o art. 23, caput e parágrafo único, do Código de Ética e Disciplina da OAB.
Ante essa relevância social, legal e constitucional da advocacia, a partir da mobilização da OAB junto ao Poder Legislativo, passou a tramitar na Câmara dos Deputados projeto de lei (PL 5.154/23 apenso ao PL 5.109/23) objetivando a inserção, na Lei 8.906/94, de medidas protetivas de urgência em favor de advogados e advogadas que sofrerem ameaça, coação ou violência no exercício da profissão. Sem dúvida, esse aprimoramento normativo irá conferir mais robustez e eficácia às prerrogativas da advocacia, haja vista que oferecerá segurança aos profissionais e assegurará o livre exercício do múnus, o que, em verdade, constituirá mais uma garantia para os cidadãos assistidos.
Ainda no campo legislativo, a fim de ver adequadamente tutelada a elevada função social desses profissionais reputados essenciais à administração da justiça, o Conselho Federal da OAB irá propor ao Congresso Nacional um projeto de lei visando à criação de qualificadoras para os crimes de homicídio e lesão corporal contra advogado ou advogada no exercício profissional, assim como contra o cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau em razão da mesma condição. Pretendendo, portanto, tornar mais severa a punição dos que contra estes avançarem, o projeto de lei suscitará a alteração dos arts. 121 (homicídio) e 129 (lesão corporal) do Código Penal, bem como do art. 1° da Lei de Crimes Hediondos.
De se ver, sendo a advocacia uma salvaguarda de cada um e de todos contra a própria barbárie, incumbe a todos e a cada um fomentar uma consciência coletiva quanto à grande importância desse ofício e do papel desempenhado pelos que o abraçaram como profissão de fé, de forma a salvaguardá-los da virulência decorrente da incivilidade.
Afinal de contas, se são “bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça” (Mateus 5:6) e se, tal como o exemplo cristão, os advogados não vieram para destruir as leis, mas sim para cumpri-las (Mateus 5:17), cabe aos senhores, cidadãos brasileiros, defender a vida de quem vos defende.
*Carlos Barros é Advogado criminalista, Diretor da OAB-PE e Coordenador do Sistema Estadual de Prerrogativas
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